Vestíbulo de coisa nenhuma!
Os
exames vestibulares são uma das maiores, possivelmente a maior praga
que infesta a educação brasileira. O seu nome, derivado de “vestíbulo”,
que quer dizer “átrio, entrada de um edifício”, sugere que eles
são apenas uma inocente e estreita porta de entrada para as universidades.
De fato, para isso foram criados. Mas freqüentemente acontece com as
instituições sociais o mesmo que ocorre com os medicamentos:
os efeitos colaterais não-previstos são mais importantes que
os efeitos desejados. Pode ser que a cura seja pior que a doença.
É o caso dos vestibulares. Anunciados como inocentes portas de entrada,
o seu efeito maior, entretanto, tem sido o seu poder de moldar e determinar
os padrões de educação nas escolas de ensino médio
e até mesmo de ensino fundamental. Cúmplices nesse processo
são os pais. Ansiosos por ver seus filhos nas universidades, por imaginarem
que um diploma vai lhes garantir segurança econômica, exercem
pressões sobre as escolas no sentido de que elas se transformem em
instituições dedicadas a “preparar para os vestibulares”.
Boa
escola é aquela que segue os modelos dos cursinhos. Aquelas que não
se ajustam estão condenadas à marginalização:
instituições inúteis, não preparam para os vestibulares.
Os
professores que preparam as questões para os exames vestibulares, cada
um mergulhado nas particularidades da sua própria disciplina, nem de
longe imaginam que, ao elaborar uma questão, estão determinando
os rumos da educação no Brasil. Não sabem que no simples
ato de imaginar um problema eles estão determinando padrões
de inteligência e padrões de conhecimento para todos os jovens
do Brasil. O padrão de conhecimento refere-se à soma de informações
julgadas necessárias e indispensáveis para se passar nos exames.
O tipo de inteligência refere-se às operações mentais
julgadas essenciais para o mesmo fim.
Ora,
esses dois elementos, padrões de conhecimento e padrões de inteligência,
constituem-se num resumo de toda uma filosofia da educação.
Os exames vestibulares, assim, involuntariamente, estabelecem o modelo de
excelência educacional a ser seguido pelas escolas.
Quanto
à inteligência, é preciso saber que não há
uma, mas muitas. Como na estória da Bela Adormecida, muitas delas se
encontram mergulhadas em sono profundo, à espera de que um beijo de
amor as acorde… Outras, segundo denúncia de Hermann Hesse, são
simplesmente assassinadas. Os exames vestibulares encontram-se entre os feiticeiros
que fazem dormir muitos tipos de inteligência e entre os assassinos
que matam muitas outras. São, assim, culpados de bruxaria e assassinato…
Uma
professora da Unicamp me contou que os alunos que mais dificuldade tinham
em seguir a sua disciplina eram aqueles que haviam passado nos primeiros lugares
nos exames vestibulares.
Havendo desenvolvido com sucesso o tipo de inteligência
necessária para passar nos vestibulares, que pressupõe haver
sempre uma alternativa correta, entre as várias apresentadas, a sua
inteligência não conseguia conviver com uma situação
de incertezas, em que cada decisão é sempre uma aposta. Os alunos
perguntavam sempre: “Mas, professora, qual é a resposta certa mesmo?”
Assim
é a inteligência vestibularesca, em direta oposição
à inteligência científica que, como K. Popper e Thomas
Kuhn o demonstraram, só germina, cresce e dá frutos em meio
às incertezas e apostas.
No
caso das disciplinas incluídas na área de humanidades o resultado
da inteligência vestibularesca é igualmente assassino. Paul Goodman
afirmava não conhecer nenhum método para ensinar as humanidades
que não as matasse. O prazer, na leitura de um livro, faz parte da
própria essência do livro.
Daí a impossibilidade de se
ensinar as humanidades para passar no exame. O ensino das “ciências
da linguagem” não desenvolve nem o prazer na leitura nem o prazer em
escrever.
O miserável artifício de estudar os “resumos” dos
livros, com os nomes das personagens e o esboço da trama, é
uma forma segura de matar o amor pelo ato vagaroso e preguiçoso de
ler. De alguma forma essas disciplinas só são aprendidas se
não houver uma guilhotina ao final do caminho. É como o amor:
a ameaça da punição, se a performance for insuficiente,
é a garantia de que ela será…
Há,
depois, o absurdo da quantidade e do tipo dos conteúdos de informação
que os estudantes devem trazer para os exames. Pede-se, dos estudantes, que
eles saibam mais, em amplitude, do que sabem cientistas já formados.
Gostaria que os professores universitários se submetessem, voluntariamente,
aos exames vestibulares.
Os resultados seriam muito instrutivos. Como é
altamente provável que um grande número não passasse,
eu inclusive, a conclusão inevitável seria a de que existe algo
de absurdo nas exigências de conhecimento dos exames vestibulares.
A
mente só guarda e opera conhecimentos de dois tipos: (1) os conhecimentos
que dão prazer e (2) os conhecimentos instrumentais, que podem ser
usados como ferramentas. Como uma altíssima porcentagem do que se exige
para os exames vestibulares não é nem conhecimento que dê
prazer nem conhecimento que se use como instrumento, esse supérfluo
é logo esquecido.
O esquecimento é uma operação
da inteligência que se recusa a carregar o inútil e o que não
dá prazer. A inteligência deseja viajar com leveza… Assim,
todo o enorme gasto de tempo, dinheiro, energia, todo esse imenso sofrimento
de filhos e pais, está destinado a terminar como os castelos de areia
construídos na praia: é logo lavado pela maré do esquecimento.
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