Fim das cotas é um equívoco, diz consultor jurídico da União
Dissertação de mestrado mostra como o Estado brasileiro participou da construção do racismo.
O
Brasil é um país historicamente racista e precisa de ações afirmativas,
como o sistema de cotas no ensino superior, para reverter os danos
causados aos negros. E um dos principais responsáveis pelo abismo
social e econômico que ainda hoje coloca os afro-descendentes em
condições desiguais de oportunidade é o Estado. As afirmações são do
consultor-geral da União Ronaldo Jorge Vieira. Mestre pela Universidade
de Brasília, o advogado mostra como o Brasil construiu, durante anos,
uma política racialista em favor dos brancos, e por que o Estado deve
cumprir a dívida racial com o seu povo. “O fim das cotas seria mais um
equívoco”, afirma.
Somos ou não um país racista? A pergunta foi
lançada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar
Mendes, na última sexta-feira, quando o ministro negou o pedido de
liminar ajuizado pelo partido político Democratas (DEM) pelo fim das
cotas raciais na UnB. A resposta, segundo o consultor da
Advocacia-Geral da União, é sim. E entender o processo que fez o Brasil
um território racista é uma das etapas para entender a necessidade das
ações afirmativas. “O prejuízo foi causado e é preciso repará-lo”,
afirmou Vieira.
CONSTITUIÇÕES – Na sua tese de
mestrado, “Responsabilização Objetiva do Estado”, defendida em 2004 e
publicada em formato de livro pela editora Juruá em 2005, o advogado
analisou as Constituções brasileiras, de 1824 a 1988. Focou no período
entre 1822 e 1851, intervalo crítico em relação ao preconceito com
negros e ao apoio aos brancos, principalmente europeus. Alguns exemplos
citados na dissertação beiram o absurdo. Como um decreto de abril de
1824, que isentava de impostos e dava o subsídio de 160 réis aos
colonos alemães e suíços que se desembarcassem no Brasil até que eles
“se empregassem vantajosamente”.
Outro decreto, de abril de
1836, isenta de imposto de ancoragem todo dono de navio que chegasse ao
Brasil com mais de 100 colonos brancos “de um ou outro sexo, de
qualquer país ou religião”. Na visão de Ronaldo Vieira, as ações do
Império revelam a clara intenção de branqueamento da população.
“Enquanto os brancos se consolidavam no mercado de emprego, nas
instituições de conhecimento, os negros ainda eram tratados como
mercadoria pelos escravocratas”, observou o especialista em Direito.
O
consultor afirma que tais fatos comprovam as “digitais” do Estado no
racismo brasileiro. “Fica claro que o Estado participou da construção
do racismo no país e, portanto, por lei, deve agir para repará-lo”,
comentou. Para Ronaldo, a análise histórica da legislação brasileira
também derruba a tese de que o debate sobre ações afirmativas no país
veio importado dos EUA, que também fomentou políticas severas de
segregação racial: “Somos um país racista por nossa própria história”.
AINDA HOJE
– Vieira ressalta que as ações preconceituosas praticadas na época do
Brasil Império ainda hoje refletem na sociedade. Ele cita uma série de
estudos recentes sobre o tema, como os números divulgados pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado à Presidência
da República, em 2006. “A média de tempo de estudo entre os brancos é
de 7,7 anos. Entre negros cai para 5,8. O salário médio dos brancos é
de R$ 561. Entre os negros cai para R$ 290. Cerca de 44% das mulheres
negras nunca fizeram o exame de mama. Entre as brancas, as
desassistidas caem para 27%”, exemplificou.
O consultor da
Advocacia-Geral daUnião ressalta ainda artigos da Constituição
brasileira, de 1988, que apontam para necessidade das ações
afirmativas. O Artigo 5º do documento afirma que “todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Já o artigo 3º
determina que é objetivo da República Federativa do Brasil construir
uma sociedade justa e erradicar a miséria e a marginalização e reduzir
as desigualdades sociais. “Todos os indicadores apontam para
necessidade de políticas afirmativas. É uma questão de justiça”,
concluiu Vieira.
O pedido de liminar feito pelo DEM será levado
a julgamento definitivo pelos 11 ministros do STF em data ainda não
definida. Até lá, o ingresso dos 654 estudantes aprovados no sistema de
cotas no último vestibular da UnB ocorre normalmente.
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